sábado, 24 de maio de 2014

Eurico Dias Nogueira: frontal e polémico em três países e dois continentes

Obituário


(foto reproduzida daqui)

A sua vida ficou marcada pelo facto de ter sido bispo em dois continentes e três países – Moçambique, Angola, Portugal (mesmo se na época os dois primeiros eram colónias do último). D. Eurico Dias Nogueira, arcebispo resignatário de Braga, que morreu terça-feira passada, era um homem frontal, polémico, afável, que construiu pontes com líderes islâmicos, mas alimentou também polémicas azedas com políticos portugueses – Francisco Sá Carneiro foi por ele atacado, por ter casado com Snu Abecassis, acabando o então bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, por criticar o colega de Braga.
Último bispo português vivo a ter participado ainda no Concílio Vaticano II – cuja memória ele fazia nesta entrevista, publicada há três anos –, Eurico Dias Nogueira nasceu em Dornelas do Zêzere (Pampilhosa da Serra, diocese de Coimbra), em 1923. Ordenado padre em Dezembro de 1945 foi, logo após a ordenação, para Roma, onde chegou a 31 de Dezembro, passando a residir no Colégio Pontifício Português.
Aí, conforme o próprio recordava em 2012, conheceu ainda o padre Joaquim Carreira, então reitor da instituição, que acolhera no colégio dezenas de refugiados fugidos dos nazis. D. Eurico recordava-se de ouvir as histórias dos refugiados (incluindo judeus) que tinham estado no colégio em 1943-44. Mas, durante os primeiros meses em Roma, o problema no colégio “foi a deficiente alimentação”, como contava num artigo escrito em 2000.

Regressado a Coimbra em 1948, foi nomeado em 1964 bispo de Vila Cabral (actual Lichinga), no extreme noroeste de Moçambique e foi já com esse título que participou na sessão conciliar. Em 1972, para resolver o impasse da sucessão do bispo da Beira (D. Sebastião Soares de Resende), aceitou ir para Sá da Bandeira (actual Lubango, Angola), tendo resignado à diocese em Fevereiro de 1977. Em Novembro seguinte, no entanto, o Papa Paulo VI nomeou-o arcebispo de Braga, cargo que ainda desempenhou por duas décadas. Aqui pode ouvir-se também um perfil biográfico:



A chegada do novo bispo a Vila Cabral começou com um conflito com as autoridades. Como ele conta no livro Episódios da Minha Missão em África, o governador local mandou chamar o novo bispo, mal ele chegou à cidade. Mas D. Eurico negou deslocar-se ao gabinete do governador: “É aqui, nesta modesta habitação, que espero ter a honra de receber o senhor governador”, respondeu ele ao emissário.
O episódio  foi um entre vários incidentes com as autoridades coloniais, que lhe valeram a acusação de ser comunista – quem não era a favor do regime, era comunista, como o próprio arcebispo recordava a propósito dessas acusações. O bispo avisava que não estava em Vila Cabral para “tomar café com os ‘grandes da terra’ e chá com as respectivas esposas” e isso era o suficiente para lhe trazer famas que o próprio rejeitava, como se recorda neste perfil biográfico e como Manuel Braga da Cruz confirma neste outro texto, que recorda o seu papel no pós-25 de Abril de 1974, em Portugal.
Em Moçambique, o bispo teve a preocupação de criar um bom entendimento com as comunidades muçulmanas, dominantes na região. Contava o arcebispo no livro referido que uma Carta fraterna aos muçulmanos, escrita a propósito dos 50 anos de Fátima, foi lida nas mesquitas. No texto, ele abordava os pontos de contacto entre o Evangelho e o Alcorão, bem como a perspectiva que sobre Maria de Nazaré é dada no texto sagrado do islão.
Já como bispo de Sá da Bandeira, em Angola, Eurico Dias Nogueira recebeu Miguel Torga, que registou a sua passagem na região no Diário: “Quase apostava que aquele campo santo [da missão católica da Huíla] será no futuro da pátria angolana um panteão nacional. Ou a ressurreição de Cristo e a fraternidade humana deixarão de ter sentido nestas paragens.”
Entre as posições frontais que tomou, também não teve medo de defender a possibilidade do sacerdócio das mulheres. No livro Memórias do Arcebispo (Notícias Editorial), ele dizia: “Veria com bons olhos o acesso da mulher ao sacerdócio. (...) Talvez tenham sido razões de ordem histórica e sociológica, e não propriamente teológicas, que reservaram para os homens a ordenação sacerdotal. (...) no anúncio da Ressurreição de Jesus Cristo, que envolve todo o Evangelho, as mulheres intervieram e até foram as primeiras a proclamá-la aos apóstolos e discípulos.”

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