domingo, 2 de novembro de 2014

Anselmo Borges: "...sobre a morte o que é que sabemos?"

Crónica



(...) Ninguém sabe o que é morrer - lá está M. Heidegger: “A morte do outro revela-se como uma perda, mas sobretudo como a perda que experienciam os que ficam. A perda sofrida não lhes dá, porém, acesso à perda de ser enquanto tal que o moribundo ‘sofreu’. Nós não experienciamos no sentido forte desta palavra o falecimento dos outros: quando muito, a única coisa que fazemos é ‘assistir’ a ele.” Por isso, ninguém sabe também o que é estar morto, nem sequer para o próprio morto. Depois, as palavras deslizam para o sem sentido, quando, perante o cadáver, dizemos, por exemplo: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo está aqui morto, a minha amiga está aqui morta... De facto, o que falta é precisamente o sujeito: o pai, a mãe, o amigo, a amiga... Como não faz sentido dizer que os levamos à última morada, que os cremamos ou enterramos. Quem se atreveria a enterrar, a cremar o pai ou a mãe, o amigo, a amiga, o filho? E, quando vamos ao cemitério, que jogo de linguagem é esse que nos leva ao atrevimento de dizer que os vamos visitar? De facto, nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém – o Evangelho é cru: ali, só há “ossos e podridão”. Assim, pergunta-se: o que há lá então, para que a violação de um cemitério seja um crime hediondo? O que lá há é uma interrogação in-finita, para a qual não há resposta adequada: O que é o Homem? O que é o ser humano?
Eu sei que hoje não é de bom tom falar ou escrever sobre estes temas. Mas não é a morte, facto perfeitamente natural, que se torna espaço de e da cultura? Sem a morte e a sua consciência, haveria religiões e filosofias?
O sintoma mais claro da crise deste nosso tempo - uma crise financeira, social, económica, religiosa, moral - é a morte tornada tabu, o único tabu. Para ser o que é, a nossa sociedade não teve apenas de fazer da morte tabu, ela é a primeira na história a colocar o seu fundamento sobre o tabu da morte: disso não se fala e vive-se como se ela não existisse. (…)
Compreende-se que nesta sociedade, no quadro da objectivação total e humanamente “des-finalizada”, a morte não tenha lugar. Daí, a desumanização crescente, sendo, pois, necessário voltar ao pensamento sadio, não mórbido, da morte. Esse pensamento não impede de viver. Pelo contrário, pela consciência do limite, leva a viver intensamente o milagre do existir, a cada instante, é ele também que remete para a ética, distinguindo entre bem e mal, justo e injusto, o que verdadeiramente vale e o que realmente não vale, e ensina a fraternidade: somos mortais, logo, somos irmãos. E abre à Transcendência, pelo menos enquanto questão.
Neste sentido, apesar do tabu, os dias 1 e 2, hoje e amanhã, dias dos santos e dos finados, são os dias da interrogação essencial.

(Extracto da crónica de Anselmo Borges no Diário de Notícias de 1.12.2014, intitulada Os dias da interrogação; Imagem: Luísa Sousa Santos)

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