domingo, 16 de novembro de 2014

Elogio das “pessoas desimportantes” e das “coisas que não levam a nada”

Crónica


Ilustração de Manoel de Barros, reproduzida daquionde também 
se pode ver o trailer do filme sobre o poeta Só Dez Por Cento é Mentira 
e aceder a ligações para poemas do autor de Arranjos para Assobio


Hoje, na sua crónica d’Os Dias da Semana, no Diário do Minho, que a seguir se transcreve, Eduardo Jorge Madureira Lopes escreve sobre Manoel de Barros, cuja morte já foi referida aqui no blogueOs interessados podem ler as quatro páginas do caderno especial que o jornal brasileiro O Povo dedicou ao poeta que “deu voz ao ínfimo da vida”.


Texto de Eduardo Jorge Madureira

Os negócios com humanos estão em tempos favoráveis. Entre os mais lucrativos, encontram-se os relativos ao tráfego (de tráfico falaremos noutra ocasião) de pessoas. No hemisfério sul, os lugares nos barcos, que, quando não naufragam, a Europa enxota, têm preços cada vez mais elevados. Até para escapar à miséria – da fome, umas vezes; da guerra, outras; das duas, frequentemente –, é preciso dispor de dinheiro em abundância e quase sempre, todavia, insuficiente. Para ser admitido na casta gold de cidadania, que se inventou no lado norte ocidental do planeta, é requerida riqueza muito maior ou muito maior astúcia. O mundo parece de feição para quem fomenta, beneficia e gaba o comércio de pessoas.
Mas há quem dedique uma vida inteira a valorizar o que não tem valor. É o caso de Manoel de Barros, que morreu na quinta-feira, com 97 anos, um dos mais originais criadores da literatura de língua portuguesa contemporânea. Na sexta-feira, os jornais brasileiros deram a notícia na primeira página e, em alguns casos, como o de O Povo, de Fortaleza, publicaram cadernos especiais com textos de Manoel de Barros. Um título acertado, de O Popular, do município de Goiânia, dizia: “O país perde um dos seus maiores poetas”. Não erraria se tivesse acrescentado que a perda é da língua portuguesa.
O poeta brasileiro foi um dos mais singulares cultores de “pessoas desimportantes”, de “coisas que não levam a nada”, do “que você não pode vender no mercado”, para referir alguns exemplos que se encontram na lista do que importa à poesia. Do que é, pois, verdadeiramente importante. “Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam / a Deus / Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!”, diz Manoel de Barros numa parte de um poema.
Louvar aquilo em que, quase sempre, não se repara ou que o mundo, habitualmente, desdenha, oferecendo a sabedoria de uma maneira de ver as coisas e as pessoas, é o que faz o poeta em “Matéria de poesia”:
“Todas as coisas cujos valores podem ser / disputados no cuspe à distância / servem para poesia // O homem que possui um pente / e uma árvore / serve para poesia // Terreno de 10 x 20, sujo de mato – os que / nele gorjeiam: detritos semoventes, latas / servem para poesia // Um chevrolé gosmento / Colecção de besouros abstémios / O bule de Braque sem boca / são bons para poesia // As coisas que não levam a nada / têm grande importância / Cada coisa ordinária é um elemento de estima // Cada coisa sem préstimo / tem seu lugar / na poesia ou na geral // O que se encontra em ninho de joão-ferreira: / caco de vidro, garampos, / retratos de formatura, / servem demais para poesia // As coisas que não pretendem, como / por exemplo: pedras que cheiram / água, homens / que atravessam períodos de árvore, / se prestam para poesia // Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma / e que você não pode vender no mercado / como, por exemplo, o coração verde / dos pássaros, / serve para poesia // As coisas que os líquenes comem / – sapatos, adjetivos – / têm muita importância para os pulmões / da poesia // Tudo aquilo que a nossa / civilização rejeita, pisa e mija em cima, / serve para poesia // Os loucos de água e estandarte / servem demais / O traste é ótimo // O pobre-diabo é colosso // Tudo que explique / o alicate cremoso / e o lodo das estrelas / serve demais da conta // Pessoas desimportantes / dão para poesia / qualquer pessoa ou escada // Tudo que explique / a lagartixa da esteira / e a laminação de sabiás / é muito importante para a poesia // O que é bom para lixo é bom para poesia // Importante sobremaneira é a palavra repositório; / a palavra repositório eu conheço bem: / tem muitas repercussões / como um algibe entupido de silêncio / sabe a destroços // As coisas jogadas fora // têm grande importância / – como um homem jogado fora // Aliás é também objecto de poesia / saber qual o período médio / que um homem jogado fora / pode permanecer na terra sem nascerem / em sua boca as raízes da escória // As coisas sem importância são bens de poesia // Pois é assim que um chevrolê gosmento chega / ao poema, e as andorinhas de junho.”
O poeta cumpriu o que, num poema, diz que o Padre Ezequiel – o primeiro professor de agramática – lhe augurou aos 13 anos: carregar “para o resto da vida um certo gosto por nadas”. Um milagre, certamente.


P.S.: Com alguma sorte, ainda se encontrará em algumas livrarias a Poesia Completa, de Manoel de Barros, que a Caminho editou em 2011.

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