sábado, 8 de agosto de 2015

Maria Adelaide P. Correia (1929-2015). In Memoriam

Maria Adelaide Pinto Correia tocou a muitas e muitos, crentes e não-crentes. A sua relação com Deus, com a vida e com os outros fazia-se de coisas simples, humor, natureza e gestos ínfimos.
Nascida em 3 de Outubro de 1929, médica de formação, dedicou-se à saúde escolar, sendo autora do livro Memória de 30 Anos na Saúde Escolar (ed. Livros Horizonte). Desde cedo empenhada no associativismo católico, Adelaide Pinto Correia era associada do Metanoia –Movimento Católico de Profissionaisdesde a sua criação, em Fevereiro de 1986. Nesse âmbito, foi durante anos a responsável pela publicação da revista Viragem.
Mas também traduziu dezenas de textos (nos últimos anos da sua colaboração, insistiu em dar a conhecer o contributo e o pensamento de Marcel Légaut), escreveu pequenas notas que reflectiam sinais dos tempos e manteve ainda uma crónica regular, sob o título Caminhando sob o Esplendor da Tua Face, que manifestava muito do que ela era e da sua busca espiritual.
Numa delas, publicada no número 31 (Abril-Junho 1999), e reeditada em Julho de 2010, a propósito dos 25 anos do Metanoia, ela desfiava algumas memórias:


Em qualquer 1º de Maio do resto da minha vida

Caminhávamos nós, Senhor, sob o esplendor da Tua face? Com certeza que sim! Caminhávamos sob um esplendor que todos sentíamos, naquele primeiro e único 1º de Maio em Lisboa, em 1974. Íamos todos misturados, os que lutaram e os que se salvaguardaram, “os que crêem em Deus e os que não acreditam” (“La rose et le réseda”, do Aragon, claro), os que não percebiam senão o esplendor em cheio, e os que já se organizavam para lhe dar o rumo que determinadamente achavam salvador para todos nós. Ríamo-nos, abraçávamo- nos, chorávamos; os que desfilavam e saíam das filas para abraçar outros que estavam no passeio, e os que saltavam do passeio para abraçar os que desfilavam.


1º de Maio de 1974, em Lisboa (foto reproduzida daqui)

A minha geração tinha 40 e tal anos. Não tinha conhecido outro regime senão a bota, mais ou menos de elástico (quer dizer, de elástico no vestir e no pensar; ferreamente armadilhada para os inimigos). Nada de revistas “estrangeiras”; nada de modernices nem no pensamento; nada de expressão livre de opiniões, onde quer que fosse; nada de associações para reflectir e actuar. Já vi escrito assim: “Aquela época em que não se podia dizer o que se queria e até pensar podia ser proibido.” Uma filha minha abriu de espanto enorme as bocas duma classe do 2º Ciclo quando lhes explicou que os pais dela não podiam dizer alto no café as suas opiniões. Tínhamos amigos vilmente torturados; queimávamos os papéis deles em nossas casas; aprendíamos a clandestinar as actividades mais inocentes.
Mesmo nas acções de simples solidariedade humana e cristã nos bairros pobres à volta de Lisboa, pouco podíamos falar, poucos colaboradores podíamos aliciar. Alfabetização?! – mas isso era oposição ao regime, era sapar os fundamentos do bem- estar português...
Lembro-me de uma reunião da JUC e da JUCF [Juventude Universitária Católica/Feminina], (a Acção Católica nas Faculdades) com o padre Abel Varzim, quando houve uma reunião da NATO em Lisboa. Questionávamos tudo, no espaço estreitinho da nossa sala de reuniões. Nesse dia, convidámos os do MUD [Movimento de Unidade Democrática] juvenil. Era arriscado mas exaltante (... e parece agora tão pueril...) Rezámos, no fim, o Pai-Nosso, eles em círculo à nossa volta, de braços cruzados, muito sérios. E tomámos decisões (ocultas, claro, escondidas, sonegadas). Da nossa consciência e ignorância, da nossa gesticulação fútil, o Senhor terá sorrido. Do emprisionamento das nossas vidas, não!!
Lembro-me, pelo ridículo, de uma reunião de médicos feita contra a vontade do nosso inspector. O que nós queríamos era um melhor funcionamento do serviço, mais apuradamente dirigido às necessidades que encontrávamos nas escolas e liceus. Não podendo utilizar os gabinetes de Saúde Escolar, reunimos [no Hospital de] Santa Maria, no serviço onde trabalhava um de nós. À saída, estava a PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado] no corredor; fraccionámos o grupo e escapámos por salas e escadas que conhecíamos melhor do que eles... Era tudo assim!!
Na contra-capa desta Viragem [nº 31] encontram um poema da Sophia, belíssimo, certeiro e necessário, escrito em Maio de 1974 [Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda/ Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invica o povo/ Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio/ E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade.// (...) Para construir a festa do terrestre/ Na nudez da alegria que nos veste."] Não vos escreverei, hoje, com textos da Bíblia; mas caminharei diante da Face do Senhor com outros textos, de outros quadrantes humanos, Seus filhos também (neste caso, do Duhamel):

A branca iluminação

De acreditar que todo o bem é possível.

Fogo fértil dos grãos, das mãos e das palavras

Acende-se uma fogueira de alegria e todos os corações estão quentes.

Deixaremos de parte o repouso e o sono

Seremos mais rápidos que a autora e a primavera
Prepararemos dias e estações

À medida dos nossos desejos.

Como um pássaro a voar tem confiança nas suas asas
Nós sabemos onde nos leva a nossa mão estendida
Vai ter com o nosso irmão.

Amen. Aleluia.


No nº 53/54 da Viragem, Adelaide Pinto Correia (que também integrou o painel de cronistas do programa Como se Visse o Invisível, da TSF, a par de Anselmo Borges, Maria de Lourdes Pintasilgo, Faranaz Keshavjee e Silas Oliveira) escrevia sobre o envelhecimento que já sentia e sobre a sabedoria que a vida pode trazer.

Caminhando, OK, Senhor!. Caminhando sempre, em direcção a Ti. Caminhando, migrantes da mesma horda, com os humanos nossos irmãos, seu barulho ensurdecedor, seus silêncios atrozes.
Com paixão, solidariedade, diligência, inteligência – pois, os ingredientes todos que conhecemos e pudemos usar (“soubemos”,é implícito).

O que é que pode uma já provecta metanoia acrescentar sobre isto?
Alguma coisa, para os mais novos e os vossos filhos:
Direi que, para-sobreviver-ao-envelhecimento-caminhando é preciso um rico farnel. Vocês tiveram e têm todas as condições para o construir. Não se esqueçam de imprimir bem, no acervo vosso que os filhos vão herdar, o mesmo cuidado de construir esse farnel.
Eu explico: Quando deixarem o vosso trabalho activo e normal, quando uma parte das vossas capacidades e resistência fraquejar, quando as vossas responsabilidades no mundo diminuírem, como aguentar Caminhando?!... A dormir, não, com certeza! É horrível, eu vejo como é!
É aí que me refiro ao farnel sagazmente acumulado, quase por deriva natural e nem tanto por decisões.

Aparentemente, mudo de assunto. Estamos na Primavera. Há horizontes floridos em todas as estradas e todos os panoramas. Vistos afectuosamente de muito perto, a perfeição, a delicadeza e inovação de cada pétala diferente é um espanto e uma delícia!
Deliciai-vos, pois. Observai, comparai, mostrai, alegrai- vos!
Alegrai-vos a conhecer as rotas do Sol e da Lua, as maravilhas de Céu-da-Terra!
Claro que os Museus e as Conferências

Claro que a História e as Línguas

Claro que a Política e o Bem-Fazer

Claro que as Calamidades e as Reconstruções
... Mas o mundo, Senhor!, as belezas expostas e ofertas deste mundo que nos deste!

No qual continuam a caminhar até ao fim, sob o Esplendor da Tua Face! Amem!!



Maria Adelaide Pinto Correia morreu esta quinta-feira, 6 de Agosto, em Lisboa. Caminha, agora, sob o esplendor da Face que buscou. Até sempre, Maria Adelaide.

(texto anterior neste blogue: Livros para férias, vozes de liberdade e os bispos contra o Papa? - crónicas de frei Bento Domingues, Anselmo Borges e Fernando Calado Rodrigues)

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