quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Humanae Vitae, Amoris Laetitia e o "descongelamento" do Concílio


Entrevista de Luciano Moia ao bispo emérito de Ivrea, Itália, Luigi Bettazi, com quase 94 anos, considerado a última testemunha do Concílio.

Que relação existe entre a teologia da Humanae vitae e a expressada pelo Vaticano II?
 Esse era um dos temas que Paulo VI havia reservado para si. No Concílio, não foi possível falar de contracepção. Como se sabe, uma comissão se ocupou dessa questão. O papa ampliou a sua participação e, depois, assumiu a tese da minoria.

Por que essa escolha?
 Ele pensava que, talvez, deixando a possibilidade de discutir o tema no Concílio, surgiria uma linha que ele não compartilhava. No plano providencial, ele não considerava oportuno abrir modificações na teologia consolidada. Agora, 50 anos depois, pode ser que, ao contrário, chegou o momento de repensar a questão. Mas afirmar isso hoje não significa concluir que, na época, a decisão de Paulo VI não foi clara.

No entanto, foi atormentada. A própria escolha de abrir mais investigações depois do resultado da comissão não demonstra que o próprio papa sopesou longamente a questão?
Não podia ser diferente. Ele sabia que tanto a maioria dos Padres conciliares quanto da Comissão de Peritos pendia por um parecer mais nuançado em relação ao “não” que, depois, chegaria na Humanae vitae. Por isso, ele foi contestado tanto por muitos teólogos, quanto por muitas Conferências Episcopais.


Onde nasciam as suas incertezas?
Ele temia não ser compreendido. A Igreja não gosta dos avanços. Na história, sempre foi assim. No século XIX, tinha-se medo da democracia. Há 50 anos, Paulo VI se convenceu de que não podia abrir mão do rigor doutrinal sobre os temas da geração. Hoje, talvez, chegou o momento de escutar João XXIII: não é o Evangelho que muda, somos nós que, com o passar dos anos, conseguimos entendê-lo sempre melhor. Portanto, não são as doutrinas que mudam; somos nós que conseguimos compreender sempre melhor o seu significado, lendo-as à luz dos sinais dos tempos.

Hoje, a situação social é profundamente diferente, e a reflexão teológica também avançou muito. A Amoris Laetitia expressa essa mudança de perspectivas.
Sim, porque retoma o Vaticano II. Não era fácil, naquele tempo, afirmar que no matrimônio o que importa é o amor dos esposos e, depois, há a procriação. Não que não seja importante. Mas o amor conjugal está em primeiro lugar. Era uma posição muito avançada.

Quanto pesaram, naquela escolha, os pareceres de quem aconselhava Paulo VI a não se afastar da tradição?

A encíclica foi assinada por ele, portanto, devemos pensar que a decisão foi dele. Talvez ele não visse claramente os resultados de uma decisão diferente. Talvez chegaram pressões importantes. Mas não podemos pôr em discussão o fato de que foi ele quem decidiu. É claro, os tormentos existiram. E também as solicitações. A posição rigorosa do cardeal Ottaviani  e do então Santo Ofício não é um mistério.

É verdade que, diante da difusão dos protestos, Paulo VI quisera voltar atrás sobre a questão?
 Eu não saberia dizer isso. Certamente, a implementação do Concílio era um tema que o preocupava muito. De um jeito ou de outro. Ele se preocupava com isso, mas levava em frente com muita prudência. Tanto que o bispo brasileiro Helder Câmara  escreveu em um livro que solicitou a Paulo VI, várias vezes, que instituísse uma comissão para a implementação do Concílio.

Por que essa exigência?
Mas é claro: Câmara e muitos bispos com ele se perguntavam como seria possível deixar a implementação do Concílio nas mãos daqueles que não o desejaram...

Mas foi justamente isso que aconteceu...
 Infelizmente sim. Depois, veio a revolução de 1968, a Igreja se assustou ainda mais. E prevaleceram os inimigos do Concílio. Não que não houvesse exageros pós-conciliares a serem corrigidos. Mas, em vez de corrigir, congelamos tudo. Com a água suja, jogamos fora o bebê também.

 Agora, porém, o Papa Francisco está tentado a operação “descongelamento do Concílio”. Ele vai conseguir?
 Sim, mas deve fazer isso com prudência. Porque, como Paulo VI já havia intuído, não se deve confundir os fiéis mais simples. E também aquela parte da Igreja onde a situação social é diferente do Ocidente. Não é por acaso que as resistências mais fortes à Amoris laetitia vieram da África e da Europa oriental. E, depois, há os tradicionalistas. Mas isso dura desde os tempos do Evangelho. Os opositores de Jesus vinham da área mais intransigente, daqueles que olhavam para a letra da religião, escribas e fariseus. Hoje, assim como então, mudar significa renunciar a determinadas posições, a uma fatia do próprio poder, político e ideológico. Pensar de forma diferente é normal e também justo, mas o debate deve ocorrer na caridade, no respeito recíproco.

 Os ataques dirigidos contra o papa hoje não parecem estar no sinal da caridade...
 Não, de fato. Entristeceu-me muito o gesto dos quatro cardeais com as dubia. Eles se justificaram dizendo que, inicialmente, tinham escrito em privado. Mas, no momento em que se age publicamente, trata-se quase de uma sobreposição ao poder do papa. Algumas pessoas são papistas enquanto acham que o papa está do lado delas.

 Depois da Humanae vitae, também se viveu esse clima de ataque contra o papa?
 Seguramente sim. Em essência, a oposição, também por parte de Conferências Episcopais inteiras, foi muito clara. Mais de 40 Conferências Episcopais pronunciaram-se em defesa de uma aplicação extensiva da Humanae Vitae. Mas, de modo respeitoso, não como os ataques que vimos nos últimos meses contra Francisco. Na época, a preocupação dos bispos era de tipo interpretativo. Eles não queriam que as proibições colocassem em segundo plano o tema do amor no casal, que o Concílio também havia indicado como ponto de virada.

Esta entrevista foi publicada no jornal Avvenire de 29-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto para a newsletter do Instituto Humanitas da Unisinos, Brasil.


Sem comentários: